segunda-feira, 4 de abril de 2011

A história da Cervejaria de Carlos Bopp / Cervejaria Bopp & Irmãos / Continental

    
No final do século XIX, Porto Alegre se destacava por ser uma espécie de capital da cerveja - havia 21 fabricantes, segundo o historiador Gunter Axt. A maior parte se localizava no bairro Floresta, onde a comunidade alemã traçou um novo perfil à região.

E foi no Caminho Novo (atual Rua Voluntários da Pátria) próximo à Rua Ramiro Barcelos, em
6 de outubro de 1881 nasceu  a fábrica de cerveja do descendente de alemães Carl Bopp (Carlos), nascido em 1847 em Estância Velha e dono de uma fábrica de vidro e uma funilaria no bairro. Tendo se iniciado na fabricação de cerveja por acaso, a cervejaria nasceu de uma sugestão de sua esposa Maria Luisa, filha de um cervejeiro de Pelotas, que para reduzir o prejuízo de ter executado uma encomenda de uma caldeira (enorme tacho) que o cliente jamais fora buscar, a utilizasse para fazer cerveja. A mulher assumiu a produção, e nos fins de semana o marido colocava as garrafas num carrinho de mão para vender na vizinhança, a produção chegou a alcançar 150 garrafas.

Em 1886 a Cervejaria Bopp se transferiu para o terreno da Rua Cristóvão Colombo próximo à Cervejaria Becker.


Rótulo registrado em 1896 com a marca Krupp da cervejaria Bopp & Cia trazendo representações de lúpulos e de cevadas dispostos simetricamente em volta de duas molduras ovais sobrepostas que servem de painel onde figura próximo a uma trincheira um soldado acionando um canhão marca Krupp, interessante trazer a inscrição "Pelotas", talvez alguma alusão à Revolta da Armada, onde a paz finalmente foi assinada em Pelotas no dia 23 de agosto de 1895.
 De 30 de abril até 1º de dezembro de 1904, teve lugar a "Louisiana Purchase Exposition" (Exposição Internacional de St. Louis) em Saint Louis, Missouri, Estados Unidos da América, na qual a Carlos Bopp participou e sua cerveja recebeu como prêmio a medalha de bronze.
O sucesso da receita caseira foi tão grande que em 1907 a cervejaria que ficou conhecida como "Fabrica da Figueira" já era uma das mais importantes do país. Carlos Bopp gostava de dizer que quem tomava cerveja ficava forte como um elefante. Por isto, o grande animal passou a ser uma espécie de símbolo da família.
Em fevereiro de 1908, Bopp encomendou a construção de um prédio e um projeto industrial para a instalação de caldeiras à firma Steinmüller (provavelmente de Hamburgo, Alemanha). Esse projeto foi reelaborado em agosto de 1908, por Hermann Otto Menchen arquiteto da firma de Ahrons, e construido junto aos prédios já existentes.
Em 1909, os três filhos do funileiro (Carlos, Arthur e Alberto) deram inicio à Cervejaria e Fábrica de Gelo Bopp & Irmãos.
Em abril de 1910 os irmãos Bopp decidiram construir um novo prédio, com 27 metros de frente por outros tantos de fundos e com previsão de aumento de mais 18 metros nos fundos, no terreno da Rua Cristóvão Colombo n° 545, 691 e 695, no bairro Floresta em Porto Alegre – RS.
No dia 6 de maio de 1910 o jornal Correio do Povo, noticiava:
"...Cervejaria Bopp - Com o dr. Rudolph Ahrons, os industrialistas desta praça sr. Bopp & Irmãos contrataram a construção de um magestoso edificio para o funccionamento da cervejaria daquelle nome.
A rua Christovam Colombo (Floresta) ficará assim dotada de mais um predio digno di adiantamento desta capital. Como já tivemos occasião de noticiar, a Cervejaria Bopp vae desenvolver, em grande escala, a sua producão, de forma a poder attender à exportação para outros mercados nacionaes. Já está em viagem para a Allemanha, aonde chegará dentro de breves dias, o capitão Carlos Bopp Filho, que ali adquirirá machinismos modernos e outros pertences, de fórma a dotar o estabelecimento de todos os requisitos necessarios. Os trabalhos da construcão do novo edificio da fabrica dos srs. Bopp & Irmãos já foram encetados, sob inspeção immediata do dr. Rudolph Ahrons...".
Este prédio de tres andares foi projetado pelo arquiteto alemão Theodor Wiederspahn e construído por Rudolph Ahrons e decorado pela equipe de decoradores de João Vicente Friederichs, entre eles Alfred Adolff um dos maiores escultores decoradores de Porto Alegre. Conta com uma área de 42.000m2, decorado com lindas esculturas na sua fachada, foi o maior prédio de cimento armado do Brasil nesta época, composto por um piso superior contínuo que servia para armazenamento de matéria prima, na parte frontal do térreo, havia um pé-direito duplo e servia de expedição enquanto nos fundos, no térreo estavam os tanques de cerveja pronta que seria engarrafada no piso intermediário.
Mas o prédio ia além da funcionalidade: sua decoração externa não foi considerada mero detalhe, tanto que consumiu 10% do custo total da construção. A fachada funcionava como um gigantesco outdoor, que, por um lado, incentivava o consumo de cerveja e, por outro, afirmava os valores daquela nova elite que utilizaram a arquitetura de seus empreendimentos para afirmar sua posição social. A fábrica era considerada sinônimo de progresso, riqueza e civilização. Sendo assim aumentado e dotado de todos os recursos técnicos, imponente e com uma produção impressionante para a época – 30 mil garrafas por dia – produzindo as cervejas: Pielsen, Hercules, Elefante, Negrita, Comercial e ainda o Guaraná , a nova fábrica possuía um dínamo que fornecia toda a luz do edifício, um elevador de 15 metros de altura, hidráulica própria (com água captada do Rio Guaíba) e salas de análises químicas. Todo o maquinário era importado da Alemanha.
Em 1911 Carlos Bopp veio a falecer e neste mesmo ano em 28 de outubro, o segundo prédio da Cervejaria Bopp foi inaugurado.




Com o consequente aumento da produção, em maio de 1912, foram iniciados os projetos de construção de um aumento na casa de máquinas, de um grande tanque de água e de uma nova chaminé de 35 metros de altura que só foram concluidos com a chegada da nova maquinaria em meados desse ano.
Em junho de 1912 a firma Linde Maschinenfabrik A.G., de Wiesbaden foi encarregada do projeto da fábrica de gelo.
Para dar vazão a crescente demanda houve a necessidade de uma completa reformulação de toda a fábrica. Em maio de 1913 foi iniciado o projeto industrial de um novo prédio para caldeirões de cozimento na firma A. Ziemann, de Stuttgart, Alemanha, com projeto arquitetônico realizado na firma Bihl & Woltz, da mesma cidade, em julho de 1913 esse projeto foi complementado pela firma A. Ziemann com a adição de uma central de moagem de cereais realizada pela firma Schindler & Stein A.G. de Dresden, Alemanha. Além disso uma nova fábrica de gelo foi desenvolvida pela firma Linde Maschinenfabrik A.G., de Wiesbaden.
Em outubro de 1913, foi assinado o projeto do "pavilhão sul", o terceiro prédio do conjunto que seria recuado em relação à Rua Cristóvão Colombo em planta quadrada de 14 metros de lado com tres pisos e porão, com um passadiço ligando o pavilhão sul ao conjunto de prédios já concluídos.



Na imagem dá para ver nítidamente os tres prédios (de 1908, 1911 e 1914)

Em 1914 a Bopp fez a conversão de sua fabrica de Cervejaria de alta fermentação para baixa fermentação.
No primeiro dia de julho de 1924, as indústrias denominadas Bopp Irmãos, Bernardo Sassen e filhos e sucessores de Henrique Ritter (com fábricas em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande) promovem uma fusão (reunindo as famílias cervejeiras Ritter, Becker, Sassen e Bopp) caracterizando-se em uma única empresa, dando ao estabelecimento comercial a denominação de Cervejaria Continental (Cervejaria Bopp, Sassen, Ritter e Cia. Ltda.) que se instalou no edifício da antiga Cervejaria Bopp Irmãos, na Rua Cristóvão Colombo nº 545, 691 e 695, no bairro Floresta, em Porto Alegre - RS.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Significados nas representações escultóricas da fachada da Cervejaria Bopp & Irmãos

O conjunto escultórico central, localizado na fachada do prédio aqui denominado 1(um) e que está mais visível ao público (situa-se no limite da calçada), é encimado pela figura de um elefante, localizado centralmente, sobre o frontão e a data do prédio, e ladeado por duas pilastras, sobre as quais estão duas estruturas globulares circundadas por crianças. Mais abaixo, na continuidade das pilastras, existem duas efígies coroadas e emolduradas por guirlandas de frutas, lúpulo e espigas de cereais; recorrentes nos dois prédios que originalmente constituíram a fábrica; e, num nível um pouco mais baixo, um gato (à esquerda) e um cão (à direita) sobressaem da parede do prédio. Neste nível está a platibanda do edifício, onde, sobre o limite da fachada frontal esquerda, ergue-se, sobre um pedestal, em cuja base foi colocada uma coruja, a figura de Mercúrio, acompanhada por um galo e um bode. Trata-se de um Mercúrio em atitude displicente, com um leve sorriso, quase debochado, apoiado sobre uma luminária. Abaixo, na altura do cão e do gato, na quina do prédio, há duas efígies que, como as descritas anteriormente, estão coroadas por guirlandas de lúpulo e espigas de cereais. Porém estas, de maneira diversa daquelas, têm um aspecto mais grotesco, com olhos e lábios inchados (Figura 8).
A essas representações impressas na fachada do prédio 1, soma-se um relevo, situado junto à platibanda e entre as janelas dispostas à esquerda da porta: a figura de um barril, de onde sai um pequeno bode, ladeado por duas figuras infantis que seguram, no centro do barril, uma coroa, provavelmente de lúpulo e espigas de cereais (Figura 9).

O motivo mais relevante e original da fachada é, sem dúvida, o Elefante e, em seguida, Mercúrio. É importante destacar que Elefante e Mercúrio tornaram-se duas das principais marcas de cerveja produzidas pela fábrica. Porém, a representação de Mercúrio na fachada é anterior à marca da cerveja, ao contrário da cerveja Elefante, que já existia anteriormente. Além disso, o fato de as cervejas se denominarem Elefante e Mercúrio não é o bastante para que se conheça o que eles significavam e a sua importância no conjunto geral das representações escultóricas da cervejaria: no entanto, elas chamavam-se Elefante e Mercúrio, e não outro nome qualquer.
Andreas Hauser (comunicação pessoal) explica que, desde o Renascimento, os programas iconográficos se apóiam em manuais onde são condensados e organizados todos os saberes sobre o mundo mitológico antigo. Aqui, como acontece em outros lugares (ver a Warenhaus Tietz, em Berlim), a iconografia clássica é colocada a serviço de usos modernos. O Globo e o Mercúrio estão presentes tanto na cervejaria como na Kaufhaus, em Berlim (Hauser, comunicação pessoal).
Mercúrio é uma das figuras mais complexas da mitologia, convergindo para ele várias tradições: babilônica, egípcia, grega, romana. Mercúrio tem sido considerado como o símbolo da inteligência industrial e do comércio. Provavelmente o Mercúrio foi escolhido pelo mesmo motivo que na Tietz: porque simboliza o potencial comercial da empresa. O Globo expressa este mesmo imaginário: o comércio se estende pelo mundo inteiro. Porém, e para além disto, Mercúrio possui a força de elevação e a amplitude de deslocamentos rápidos: mensageiro por excelência, ele representa a mediação entre o céu e a terra, a viagem entre os mundos. Ele representa o elemento ar e simboliza a eloqüência e a sabedoria. Mas é, também, o protetor dos ladrões, representando as formas de perversão intelectual que se encontram em todos os tipos de trapaça, habilidades maliciosas, astúcias e espertezas. Entre os atributos que acompanham o Mercúrio, é a sacolinha de dinheiro que exprime o comércio. Este atributo, se não está ausente no Mercúrio da Bopp, ao menos não é visível facilmente, o que, enfim, resulta no mesmo. Mas, com certeza, ele tem outros atributos bem visíveis: o caduceu, o chapéu alado, o galo e o bode. Estes atributos nada têm a ver com o comércio. Com seu caduceu, Mercúrio faz as pessoas dormirem ou acordarem. O bode é uma representação recorrente em todo o prédio. Simboliza a força vital da libido e a fecundidade. É um animal ritualmente consagrado a Dionísio e servia de montaria à Afrodite. O bode tem, talvez, ligação com o tipo de cerveja chamada Bock (bode). O galo é psicopompo, ser que acompanha os mortos, já que suas almas devem renascer à luz de outro mundo. Assim, ele está associado a Mercúrio, porque essa divindade é o mensageiro que percorre os três níveis do cosmo: inferno, terra e céu. O galo, junto com o cachorro (que aparece um pouco mais abaixo) e o cavalo, fazia parte dos animais psicopompos que eram sacrificados aos mortos nos rituais funerários dos antigos germanos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 282). Como aquele que anuncia o dia que sucede à noite, o galo está sobre os campanários das Igrejas e das torres das catedrais (Ib.). Associado à serpente, como em Mercúrio, o galo marca a integração das forças telúricas, onde espírito e matéria tendem a equilibrar-se numa unidade harmoniosa (Ib.). O galo corresponde, ainda, ao Mercúrio alquímico.
O Mercúrio displicente e debochado da fachada da cervejaria Bopp está muito mais próximo das viagens, das habilidades maliciosas e da busca de harmonia entre espírito e matéria, que da inteligência industrial e comercial, ainda que uma não exclua a outra10.
A coruja, por sua vez, é o pássaro de Atena, símbolo do poder racional, mas também um atributo dos adivinhos: ela simboliza os dons de clarividência. Ela não faz parte da iconologia do Mercúrio. Talvez tenha sido associada a ele por ser também uma divindade de inteligência e sabedoria. E a explicação pode estar no fato, como Hauser alertou em seu depoimento, de que a embriaguez é um estado semelhante ao êxtase, em que profetas, sacerdotes etc. proferem sabedorias divinas. Este argumento é reforçado pela representação, colocada logo abaixo de Mercúrio, de cabeças com lábios inchados, com um aspecto de quem já bebeu bastante, coroadas por espigas de cevada e lúpulo. Entre as duas cabeças, surgem talheres que, associados às demais figuras, lembram festins e fartura.
As efígies, especialmente as que estão logo abaixo de Mercúrio, mesmo consideradas as diferenças existentes nas suas representações neste conjunto, por seus atributos, remetem imediatamente a Dionísio. Deus da vegetação, da vinha, do vinho e da embriaguez (é fácil estabelecer uma ligação direta com a cerveja: ao invés de uma coroa de vinhas, temos a de cevada e lúpulo), das frutas e das estações renovadas, Dionísio é considerado como o símbolo do esforço humano de espiritualização. O culto a Dionísio testemunha o esforço da humanidade em romper a barreira que a separa do divino. Através dele, os homens se introduzem no mundo dos deuses e transformam-se em uma raça divina. Ele representa a ruptura das inibições, das repressões, das repetições. É o deus que preside os ímpetos que provocam a liberdade, em todas as suas formas, criador de ilusões e milagres. O transbordamento de sensualidade e a liberação do irracional seriam formas desajeitadas dos homens de procurar algo de sobre-humano (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 357, 358).
Com relação ao elefante, duas questões se impõem: por que o nome Elefante foi escolhido como marca e por que este animal-marca foi colocado como figura principal do prédio e não qualquer outra figura alegórica que simbolizasse a cerveja.
Sabemos que este é um animal que movimenta a fantasia das pessoas ao combinar o tamanho colossal e o exotismo. Com o desenvolvimento do saber científico, todos que desejassem tematizar um animal tinham, a partir do século XIX, ao lado dos velhos manuais iconológicos, as enciclopédias científicas. Em uma delas – publicada em Stuttgart por Julius Hoffmann, em 1875 (Heinrich Rebau's Naturgeschichte für Schule und Haus: eine gemeinfassliche und ausführliche Beschreibung aller drei Reiche der Natur) –, segundo Hauser, consta que o elefante adora beber vinho e aguardente de arroz, e que ele ingere enormes quantidades de água, chegando a 30 baldes por dia no verão. É provável que esta característica tenha pesado na hora da escolha do símbolo.
Em geral, na literatura ocidental, o elefante simboliza a força, a resistência, a prosperidade, a longevidade, a sabedoria e a boa memória. Muitas vezes tais qualidades eram atribuídas ao imperador, já que era o animal dos imperadores (Hauser, 2003) (lembremos o impacto causado no Império Romano, quando Aníbal realiza uma impressionante demonstração de força com os elefantes de seu exército). Essas associações positivas certamente influenciaram a escolha do elefante como símbolo não só da cerveja, como também da fábrica e, mais, da família Bopp.
Vê-se, portanto, uma espetacular vontade de impressionar. Impressionar pelos motivos, que demonstram grande orgulho de ser o que se é, mas também pela forma expressa nessa escultura "branca", que lembra os mármores antigos, pela virtuosidade e dignidade acadêmicas. Ao mesmo tempo, o humor e a ironia presentes nas esculturas revelam um olhar que é fruto da irreverência, um olhar crítico que subverte o academicismo, mantendo os ideais clássicos, porém desvalorizando-os ao mesmo tempo.
Mas as representações não estão falando apenas de indivíduos, mas de um grupo social. Vejamos as que se seguem:
A zona do portal é bem diferente dessa zona superior do prédio que comentei. As esculturas, agora, estão situadas em uma vertente folclórica que se iniciou no romantismo (primeiro terço do século XIX) e que floresceu nas "Bierstuben": os motivos vêm da tradição nórdica e as esculturas, ao contrário das ligadas ao mundo clássico, não são de pedra clara, mas de gesso ou madeira pintados, segundo Hauser.
O conjunto que adorna a porta frontal do prédio 1 (Figura 10) é composto por dois barris de onde sai o lúpulo e jorra abundante espuma. Abaixo deles, nas laterais superiores da porta, dois homens, cujos atributos, especialmente o chapéu, remetem aos alemães da região de Munique, parecem sair da parede, trazendo nas mãos um caneco de cerveja. As laterais da porta são adornadas por relevos de garrafas. Este conjunto, radicalmente diferente do primeiro que foi descrito, e o único que possui cores, é composto por símbolos identitários, demonstrando a intenção de marcar uma germanidade. A evocação de traços identitários nunca é feita casualmente, mas, no dizer de Lyman e Douglas, sua manipulação é realizada como estratégia para obter certas vantagens que a apresentação da identidade étnica pode favorecer (apud POUTIGNAT; STREFF-FENART, 1998).
Sabemos que, naquele momento – diferentemente do que viria a ocorrer logo depois, com o advento da Primeira Guerra Mundial –, marcar uma origem germânica era bem proveitoso. Os teuto-brasileiros estavam, então, nos setores de ponta da economia: as primeiras indústrias foram fundadas por imigrantes alemães. Some-se a isso a ideologia do aprimoramento e branqueamento da raça, presente nos objetivos do Estado brasileiro com relação à imigração européia. Com os olhos voltados para a Europa, o consumidor local via ser-lhe oferecido um produto de origem alemã, logo, incomparavelmente melhor que um brasileiro. E, mais que isto: um produto de origem européia, produzido por descendentes de europeus. Veja-se a lógica da propaganda operando: o objeto, impessoal e desprovido de sentido na esfera da produção, torna-se único, adquire um sentido, produz uma significação, realiza diferenciações sociais e estabelece hierarquias. Estabelecendo um código classificatório, este anúncio exposto na fachada da cervejaria, é um perfeito mapa de orientação social, onde aquele que vê é capaz de captar o sentido. O fato é que, como lembrou Rocha (1990), a compra do produto é opcional, mas a do mapa é compulsória.
Entre o conjunto superior e o que está localizado na zona do portal, existem duas figuras que simulam a sustentação das pilastras. A barba e o capuz dos atlantes fazem lembrar anões, considerados seres de extrema força na mitologia, tanto germânica quanto céltica ou escandinava. Entre essas duas figuras, encontra-se uma cornucópia, de onde se derramam lúpulo e espigas de cereais.
Quanto aos anões, eles personificam as manifestações incontroladas do inconsciente e demonstram uma lógica dotada da força do instinto e da intuição, uma lógica que ultrapassa o raciocínio (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1982, p. 667, 668). Seres ligados à natureza participam dos poderes telúricos e podem ser guias e conselheiros. A eles são atribuídos, também, poderes mágicos (Ib.). Os anões são entidades de transição entre o poder divino e a fraqueza humana, estão entre a luz e as trevas, entre o mundo celeste e o inferno.
A cornucópia e as guirlandas de lúpulo e espigas de cereais, que são uma variação da cornucópia mesma, são símbolo, nas tradições greco-romanas, de abundância, fecundidade e felicidade. Com o correr do tempo, tornaram-se símbolo da liberalidade, da felicidade pública, da ocasião de fortuna, da diligência e prudência (que são bases da abundância), da esperança e da caridade (Id., p. 291). As espigas, por sua vez, representam Ceres, a deusa da agricultura e da abundância. Porém, neste caso, também podem ser vistas como uma representação da própria cevada, matéria-prima essencial da cerveja. Os dois sentidos se casam aqui. Aparentemente, a temática busca estabelecer a ligação entre os dois conjuntos escultóricos: o de vertente clássica e o de vertente folclórica.
São duas zonas, portanto: uma, superior, que se dirige a um grupo social suficientemente "cultivado" para traduzir as mensagens, e outra que fala diretamente ao consumidor comum: a publicidade não vende diretamente um produto, vende um desejo, uma promessa que o produto deve realizar. Nessa lógica, o consumidor que bebe a cerveja da Bopp está consumindo uma cerveja "alemã", que permite fazer-se igual a esse povo que é visto como superior: os alemães. Com isto, é possível atingir o seu saber, refinamento intelectual, alcançar um nível de superioridade, simbolizado nas esculturas localizadas nas partes mais altas do prédio e passar, assim, do plano inferior ao superior.
Além disso, é claro, esse grupo que é visto como superior não é apenas uma etnia. Existem alemães ricos e alemães pobres, patrões e empregados, poderosos ou não. A disposição dessa iconografia – com o clássico, o intelectual, o refinado, disposto na parte superior, e o popular, o folclórico, o grosseiro, colocado na parte inferior do prédio – estabelece, ainda, uma hierarquia que conhecemos bem. A mensagem é clara: cada um deve saber qual é o seu lugar e, a partir desse lugar, pode aspirar posições mais elevadas na estrutura social. E a cerveja da Bopp & Irmãos poderá conduzir esta escalada.
O terceiro conjunto considerado é aquele que compõe a ornamentação da entrada principal do prédio 2 (dois), onde se realizava a fabricação da cerveja (Figura 11). Esta entrada, muito mais grandiloqüente que a descrita acima, compõe-se de uma escadaria sobre a qual se coloca uma imensa porta, ladeada por duas colunas em cujos capitéis estão duas crianças: a da direita segurando uma chave, e a da esquerda, um caneco de cerveja. Essas pequenas criaturas estão em posição de guarda, como quem protege o lugar. Sobre elas, a figura ameaçadora de um ser com traços demoníacos, de grandes bigodes e pequenos chifres, que gargalha: um sátiro, ser associado ao culto de Baco. As duas composições são completadas por um arranjo de lúpulo, frutas e espigas de cevada. Sobre a porta, em arco pleno, uma figura humana, de traços germânicos, com uma grande boca aberta, sai de dentro de um barril de onde jorra farta espuma. Parte dessa espuma transforma-se em lúpulo e espigas de cereais que amarram, na parte central do barril, quatro canecos.

O quarto conjunto encontra-se sobre a torre do prédio 2, acima e à esquerda da porta principal11. A torre possui dois andares em secção quadrada, sendo o inferior um pouco maior que o superior, e, sobre o último, um domo de secção quadrangular (Figura 12). Sobre os ângulos superiores do primeiro andar estão colocadas figuras humanas, em pares (Figuras 13 e 14). Essas figuras são disformes, com ventres salientes, seios pendentes, pernas e braços abertos, em atitude quase obscena. Apoiadas em barris, onde há as inscrições Negrita, Oriente, Elefante e Oriente novamente, nome das cervejas produzidas ali, elas erguem um brinde, com um caneco nas mãos. Entre as figuras do ângulo esquerdo e do ângulo direito, está a cabeça de um sátiro, que compõe a moldura do relógio. A cena é um convite à festa e à celebração dos sentidos.
O terceiro e o quarto conjuntos completam-se e se unem, estabelecendo três frisos dispostos em alturas diferentes.
O primeiro deles, situado na parte superior da fachada, é um conjunto de elementos que fingem sustentar a platibanda, onde figura a cabeça de um bode (Figura 15). Este bode é substituído, no elemento que lhe alterna, pela figura de um sátiro. Novamente, seres ligados ao culto de Dionísio.
O friso central compõe-se de máscaras – logicamente, de traços caricaturais –, dispostas três a três. A máscara central é diferente das laterais.
O inferior, também composto por três elementos, apresenta nas laterais o relevo de um esqueleto de cabeça de bode. O relevo central do conjunto apresenta um esquilo entre lúpulo e frutas (Figura 16). Esta "caveira" de bode se relaciona, na forma como a interpreto, à representação do sacrifício deste animal a Dionísio, ritual que era realizado sempre acompanhado por cantos12.
Os prédios 1 e 2 são ligados (na altura do primeiro e segundo andares) por uma estrutura, provavelmente construída após a inauguração da cervejaria. Justamente no local onde estaria o ângulo esquerdo do prédio 2 e junto a esta estrutura de ligação, vemos uma escultura que tem sido considerada como a de Gambrinus (Figura 17).

Existem várias versões sobre a figura de Gambrinus, entretanto a forma como ele está representado na Bopp, com trajes de burguês medieval, mas o gorro e a espada sugerindo uma descendência de guerreiro nobre, parece indicar que se trata de Jan Primus – nome do qual teria derivado a corruptela Gambrinus –, duque de Brabante, que, além de ser um grande bebedor de cerveja, lutou ao lado de burguesia de Colônia na tentativa de livrar-se da autoridade de seu tirano arcebispo (DOBERSTEIN, 1992, p. 64-65).
Esta escultura apresenta uma figura em atitude elegante, sóbria, e mesmo solene, que ergue um brinde.
Na estrutura de ligação entre os dois prédios, em sua parte mais alta e colocada centralmente (Figura 18), está a data de 1914, emoldurada por um conjunto de figuras, que incluem uma cabeça de aspecto demoníaco, os recorrentes lúpulo e espigas de cereais, e flores que estão arrematadas por um barril (central), em cujos lados se sucedem canecos e garrafas de cerveja.
Mais abaixo (Figura 19), entre as aberturas do primeiro e segundo andar, foi colocado um pequeno conjunto em relevo, cujas figuras centrais são garrafas e canecos, novamente emolduradas por uma guirlanda de lúpulo e espigas de cevada, que saem da boca aberta de uma efígie situada na parte inferior central do conjunto.
A lateral direita do prédio 1 apresenta dois frisos em relevo, situados, respectivamente, entre o térreo e o primeiro andar, e entre o primeiro e o segundo andar. O primeiro, disposto sobre as aberturas do andar térreo, segue o ritmo dessas aberturas: dois a dois ou três a três. Quando estão colocados em dupla, repetem o motivo do lúpulo e das espigas. Quando dispostos em uma seqüência de três, a figura central é constituída por um "leque" de folhas. O friso superior, situado sob as aberturas do segundo andar, repete, como o friso inferior, o ritmo das próprias aberturas. Quando colocados em dupla, mostram um ramo de cereais (cevada), que lembra a figura de uma chaminé que despeja enorme quantidade de fumaça. Quando colocados em uma série de três, a figura central é um ramo de lúpulo (Figura 20).
Todos os elementos escultóricos descritos acima se encontram em locais do prédio facilmente visíveis por aqueles que passam na rua, ainda que em graus diferentes: a visibilidade é maior na fachada do prédio 1, seguindo-se a fachada do prédio 2 e a estrutura de ligação entre esses dois e, finalmente, pela fachada lateral direita do prédio 1.
Porém, existem outros elementos pouco visíveis, situados na fachada lateral esquerda do prédio 2, que precisam ser mencionados e que só poderiam ser vistos por aquelas pessoas que circulassem na fábrica. O primeiro deles está sobre um pequeno frontão (Figura 21). A figura central é um monograma com as letras B e I (Bopp & Irmãos), emoldurado por cornucópias (com os recorrentes lúpulo e espigas) e pela representação de máquinas.
Sobre uma pequena porta – situada sob a estrutura de ligação entre os prédios 1 e 2, e que leva a uma escada de acesso ao primeiro andar do prédio 1 –, está uma cabeça em relevo, com a inscrição St. Peter logo abaixo, emoldurada por dois peixes (Figura 22). Este é o único elemento diretamente ligado à religião cristã, cuja tradição liga São Pedro ao poder de abrir ou fechar as portas do céu: é ele quem possui as suas chaves. Vale a pena lembrar que São Pedro é o padroeiro do Rio Grande do Sul. Nas tradições germânicas, São Pedro é o patrono dos fenômenos meteorológicos e estes fenômenos estão ligados à produção da cerveja pelos deuses do céu. Há que se lembrar, ainda, de um tipo de cerveja produzido na Alemanha cujo símbolo é uma imagem de São Pedro.



Considerações Finais
Os conjuntos das fachadas visíveis a todos que passam na rua remetem a um universo dionisíaco, de embriaguez-prazer-êxtase-sabedoria, numa transposição, para a cerveja, do imaginário ligado ao vinho.
De maneira oposta, as duas iconografias que são vistas apenas pelos que circulam no interior da fábrica, dizem que ali o mundo é outro. As máquinas lembram a modernidade e o progresso e, também, o trabalho que deve ser realizado para se chegar a participar de tal evolução. São Pedro está sobre a porta: poder-se-ia pensar, então, que aqui o trabalho é que leva ao "Paraíso da Modernidade".
As figuras e os conjuntos escultóricos das fachadas frontais promovem a aproximação, a integração com o público que passa na rua: nos gestos do Gambrinus e das figuras da torre, fazendo um brinde, na atitude de um Mercúrio displicente, nas gargalhadas dos sátiros.
Na cervejaria Bopp & Irmãos, as representações escultóricas presentes nas fachadas exibem um discurso que uma burguesia então emergente fazia sobre si mesma, para si mesma, mas, também, para outros grupos sociais. Esse grande outdoor anuncia, primariamente, cerveja. Mas não qualquer cerveja. Ela tem um nome, uma origem. Ela está ligada a um grupo social específico (burguês) e a uma etnia (germânica). Com humor e ironia, esta publicidade subverte a tradição clássica, que a burguesia local considerava um paradigma de cultura e de civilidade. Civilidade que era européia, mas, sobretudo francesa, e que a elite brasileira procurava imitar. Mas a burguesia não é, neste momento, um grupo homogêneo13.
Este grande anúncio, construindo uma atmosfera desejável e sedutora, provoca no sujeito que o vê o esquecimento do processo pelo qual nascem os produtos (ROCHA, 1990, p. 118): o desumano processo de produção. Ele também anuncia um mundo idealizado, uma vida de prazeres e abundância, onde os homens se tornam fortes, a inteligência se aguça, os sentidos são estimulados. Se estar bêbado é algo banal e cotidiano para o proletário – e a embriaguez é considerada uma atitude condenável pela moral burguesa –, aqui ela é transfigurada, valorizada, reconhecida e incitada.
No gosto do espetáculo, da ostentação e da fruição dos sentidos, exaltam-se valores como poder e inteligência, luxo e abundância, consumo e festa. A fábrica mesma, como símbolo primeiro de progresso, sobre o qual todos os demais valores se assentam, em suas representações escultóricas apresenta um sistema de idéias e pensamentos de um setor da sociedade porto-alegrense do início do século XX.
Na opulência e grandiosidade dos conjuntos, um grupo social não apenas procura vender o seu produto, mas também fala do seu poder econômico e prega seus valores mais caros.

Fotografias do Prédio


























[360px-Cervejaria_Brahma_-_Porto_Alegre.jpg]



[elefante+cervejaria.JPG]
Detatalhe do alto da fachada











fotografia dos túneis subterrâneos da cervejaria